Jornal O Globo publica editorial criticando relação de Lula com ditador Nicolas Maduro, da Venezuela. Leia na íntegra abaixo:
Maduro expõe fracasso da estratégia de Lula
Ordem de prisão contra oposicionista vencedor da eleição comprova que ditador não quer saber de diálogo
A decisão do ditador Nicolás Maduro de mandar a Justiça prender, sob acusações absurdas, Edmundo González, o oposicionista vencedor das eleições de 28 de julho, expõe de modo eloquente o fracasso da estratégia adotada até aqui pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva diante da crise venezuelana. Depois da fraude escancarada nas eleições de julho, o Brasil se aliou à Colômbia e apostou no diálogo para encontrar uma saída. Só que, apoiado pelas Forças Armadas, Maduro nunca quis saber de conversa.
Pouco mais de um mês depois da fraude eleitoral, a crise venezuelana entra em nova fase. Sem pretensão de parecer legítimo, o regime investe na perseguição à oposição. A reação exige uma resposta à altura do Brasil. Infelizmente, não é o que se vê até o momento. Em mais uma nota anódina, os governos brasileiro e colombiano manifestaram “profunda preocupação” com a ordem de prisão de González, mas ficaram longe da condenação veemente que a situação exige. Curto, o texto faz uma descrição pródiga em platitudes: “Esta medida judicial afeta gravemente os compromissos assumidos pelo governo venezuelano no âmbito dos Acordos de Barbados, em que governo e oposição reafirmaram seu compromisso com o fortalecimento da democracia e a promoção de uma cultura de tolerância e convivência. Dificulta, ademais, a busca por solução pacífica, com base no diálogo entre as principais forças políticas venezuelanas”.
Manifestações estapafúrdias de Maduro, como a decisão de antecipar o Natal para 1º de outubro, podem dar a entender que o regime chavista é uma piada. Não é. É uma tragédia seriíssima. Para se manter no poder, as forças de segurança não tiveram pudor em atentar contra o próprio povo. A Human Rights Watch denunciou ao menos 24 assassinatos nos protestos depois das eleições. Pobreza e desigualdade não param de aumentar. A população subnutrida está perto da média africana. Em termos de percepção de corrupção, a Venezuela está à frente apenas da Somália. Um quarto da população já emigrou. Com o aumento do autoritarismo, mais venezuelanos deverão sair do país, criando mais um desafio para o Brasil na fronteira.
Além da crise humanitária, a situação na Venezuela tem uma dimensão geopolítica. Como escreveu o general da reserva Otávio Santana do Rêgo Barros no GLOBO, uma das consequências da instabilidade é a atenção de potências globais à região amazônica e à caribenha. Interessadas em erodir o poder americano, China e Rússia apoiam Maduro. Na opinião de Rêgo Barros, o desafio do Brasil é “evitar que outras potências mais poderosas transformem o subcontinente sul-americano em campo de batalha para suas disputas pelo controle do mundo”. Um conflito armado perto da fronteira norte seria o pior cenário possível.
Em Brasília, autoridades costumam dizer que Hugo Chávez ouvia demandas brasileiras, mas Maduro não. Como lidar com a escalada autoritária quando quem está no poder se faz de surdo? Com pragmatismo, marca da diplomacia brasileira, mas sem abandonar princípios democráticos. Há muitos países interessados na solução pacífica da crise. O Brasil teve a oportunidade de liderá-la exigindo, negociando e monitorando a transferência de poder ao vencedor legítimo da eleição. Quando apenas manifesta “profunda preocupação” com o arbítrio de Maduro, fica claro que a jogou fora.
*Editorial O Globo